28 de abr. de 2011

  Amanhã as 18.            


        Nonada. Noite já, ele exausto a se dirigir para casa: na tentativa de escapar do riso banguela da cidade. Distantes da leveza e da frescura das primeiras horas, os passos que percorrem a estação ferroviária são fruto da energia que ainda resta. Impulsionando o maratonista frente à linha de chegada, faz ignorar o movimento uniforme da escada rolante, a ponto de galgar dregau por dregau [como diria Adoniram]. Querendo a plataforma. Desejando com vontade embarcar em um dos vagões do trem: a reta mais curta é a estratégia [sutilmente a partida vai sendo anunciada].


Ofegante, mas na condição de passageiro embarcado [sem tapinha nas costas – “Bem vindo seja!”], um pedacinho de banco acomoda o esqueleto, agora em processo de desmonte. Soa o apito [estridente e alongado]. As portas são fechadas. Retardatários se despedem, sem aceno. O trem aos poucos inicia o deslocamento [ganhando velocidade a cada metro novo]. A estação seguinte [representada no mapa por uma bolinha – a segunda da esquerda para a direita], quadro a quadro, se aproxima tomando corpo, se agigantando aos olhos: até as pessoinhas ganham nitidez. Alinhadas junto à borda da plataforma e ao longo desta - ad infinitum – prontas, algumas, para ignorarem a gentileza do Profeta. O piloto, que não aparenta ser tocado pela “desgracera” do mundo, coloca em prática a dinâmica, já tão exaustivamente repetida [dinâmica que com facilidade invade-lhe o terreno baldio dos sonhos] – Vou desacelerando a composição, enquanto isto anuncio pelo sistema de som o nome da próxima estação. Com o trem parado na plataforma abro as portas - em geral aos atropelos, aos empurrões pessoas entram, pessoas saem. Apito, as portas são fechadas e a viagem recomeça.
Assim como o trem - que retoma o seu movimento a cada nova parada - o corpo do “passageiro embarcado” dá sinal, reage. As mãos resgatam um livro de dentro da bolsa [retalhos de jeans sob a forma de um saco com alça]. Um livro recolhido sem constrangimento, à meia hora atrás, na via pública: Nova Gramática do Português Contemporâneo – editada a vinte e cinco primaveras; encadernamento econômico; papel jornal amarelado em quantidade; faltando páginas; abandonada pelo dono; servindo ainda de morada e alimento.  E era como se estivesse segurando a si próprio. Folheando. Procurando perguntas - o dedo a percorrer palavra por palavra, linha por linha, parágrafo por parágrafo, andarilhando [é dessa forma que lê as cousas], concentrado, caminhando por entre a floresta cerrada.
No interior do vagão, outros tantos companheiros cumprem a viagem, em pé ou sentados, a sacolejar. E ele, diante do envolvimento, nem percebe o que estes em suas intimidades estão a fazer - o modo como cada qual amassa, aprisiona, afaga, descasca, morde, pinta, anuncia, aproveita, conversa, mata, acaricia o seu tempo [olhando dentro dos olhos do tempo]. Também não percebe um outro trem em sentido contrário, sorrateiro - sobre a ponta dos pés. Quando se dá p - VELOZES, RÁPIDAS, URGENTES - as composições já estão a se cruzar lateralmente, produzindo um barulho de metal ensurdecedor e um vento diferente, que entra pelas janelas, forçando a passagem [tudo vibra em alta velocidade]. Os corpos então atingidos por força descomunal são arremessados contra a estrutura do vagão, também uns contra os outros [e quando a força cessa, aos pedaços, caídos, amontoados estão todos, a configurar um ambiente de desastre]. Foi preciso somente um único piscar de olhos, para estar tudo pronto e acabado: os problemas – os pequenos e os grandes - a encontrarem o fim da linha. Lá onde a luz branca é intensa, a ponto de cegar, de ferir momentaneamente a retina, enquanto clareia.
Novamente faz-se transparente e tranqüila a água do copo.
De olhos abertos [sendo que em momento algum as duas janelas fecharam-se], com o espírito assentado no corpo, vê as pessoas ao redor, no seu trajeto cotidiano, igualmente a promoverem nossas desimportâncias: à esquerda, o olhar furtivo da mulher que segura criança segurando boneca, enquanto do outro lado, a moça luta contra o sono – cambaleante, pendendo a cabeça.
A idéia de que os trens podiam sim, terem se chocado - um encontrando espaço no outro, entrando dentro, sendo o outro [fundando algo inédito em sua vida, aproveitando para isto, o fim da terça-feira sem graça], retornou para o seu mais profundo, outra vez: o trem que percorre seus sonhos [estando ou não com os olhos fechados, visões] é o mesmo que invariavelmente lhe conduz para a cidade e para a casa.
Ele tem os livros como companheiros de viagem.

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